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O Império Contra-ataca. Primeiro o fim do mundo figurativo. Agora o fim do mundo literal. Não bem. Mas quase. Só um bocadinho mais a Norte.

Thursday, July 12, 2007

Dia 11 ::: 18-03-2007 ::: El Calafate

Hostel novo, vida nova. Acordei a tempo e horas! Não é fantástico? Estou à espera de comentários de parabenização!

Mas como a Lei de Murphy nunca falha, atentemos. No dia em que acordo a tempo para fazer tudo (e tudo incluia tomar banho como todos os dias (ou pelo menos vamos fingir que sim), tomar o pequeno-almoço, preparar a marmita e ver o mail), jestou eu na recepção do hotel na companhia de três espanhóis e uma americana à espera do transfer até que uma senhora entra no hostel e chama apenas a jovem conterrânea do Bush. Como ela ia para a mesma excursão que nós, levantamo-nos todos. Perguntamos porque é que os nossos nomes não estão na lista e a senhora diz que outro autocarro passará à nossa procura.
Resignados, sentamo-nos e estamos meio a dormir meio na conversa com o mau humor típico de quem pensa "Podia estar na cama.."
Uma hora, sim uma hora, depois do previsto chega finalmente o nosso autocarro. A cara da senhora parecia-me familiar mas só percebi o que se estava a passar quando entrei no autocarro e dou de caras com a mesma americana que saira do hotel 60 minutos antes. Pois. Era a mesma camioneta. Vá-se lá saber porquê...Eu tentei. Juro que tentei. Mas o meu cérebro começa a reagir de forma pavloviana. Apaga-se quando percebe que estou dentro de um autocarro. De maneiras que ainda não tinha feito a inversão de marcha e já eu dormia. Assim que a viagem passou rápido. Passou, reparem na piada gira que envolve uma adulteração de uma expressão típica com o acto de dormir, num fechar e abrir de olhos. Acordo com a paragem num sítio que me era familiar. Era a entrada do Parque dos Glaciares. O mesmo parque onde tinha estado ontem e que tanto me encantou. Mas desta vez não seguimos a estrada. Imediatamente após a bilheteira encostámos. Os barcos estavam à nossa frente. Ainda lancei os olhos à estrada que seguia pacífica em direcção ao fantástico espetáculo que tinha visto ontem.A espera pela entrada nos Catamarãns é algo dolorosa. O vento patagónico gelado deixa-nos com uma sesação desagradável nos olhos e tento distrair-me com o que me rodeia. O Lago que ontem era de um azul estranho apresenta hoje uma cor que parece uma mistela entre verde e cinzento. O céu nublado e o sol ainda baixo explicam a cor. Ao largo, o lago está trilhado entre poderosas e áridas escarpas patagónicas que se precipitam em direcção à água. E não haviam de ser a única coisa a precipitar-se para a água no dia de hoje. Mas isso a seu tempo será explicado.

Passados uns minutos em que fomos obrigados a manter-nos no interior do barco por questões de segurança (este barco voava, não navegava), o barco abranda. Não percebo porque é que toda a gente, particularmente a irritante excursão de italianos que berra o tempo todo (e isto a estas horas da manhã, gritos é coisa que me dói), se empurram e ME empurram para passar la para fora. Saio do interior do barco. Meus amigos não há polares, cachecóis, golas, calças de neve ou fogueiras que resistam. O ar ali é gelado como nunca vi. A explicação está à minha esquerda. Ou melhor, está e não está, consoante as cabeças se moviam e me deixavam ver uma nesga daquela maravilha.


Captado um momento com a melhor conjugação de posições de cabeças, braços e máquinas possível.
As horas que se seguem são inacreditáveis. Como que atirados para um documentário do Discovery ali estamos, rodeados de pequenas e gigantes ilhotas de tons azul fortissimo. Não são de terra nem de pedra. São de gelo. Enormes estátuas flutuantes que assumem diferentes formas e diversas cores. Algumas mais brancas, outras mais azuis. Algumas escuras por causa das morenas (detritos arrastados pelo glaciar que ficam no interior do gelo) e outras de várias cores mostrando os vários níveis a que já estiveram submersas. Aqui e ali, algumas formam desenhos que quase nos fazem crer que ali houve mão humana. Mas não. Não houve. É a natureza no seu esplendor. E ainda bem. Olho à volta. Pareço rodeado de putos e a verdade é que não se vê uma única criança ali. Este cenário de fantasia desperta em nós o que mais há de criança, por muito que essa faceta possa estar enterrada. Os ah's sucedem-se à mesma velocidade que os "clicks" ou os "txkik" consoante seja a tecnologia usada. E assim passamos um bom tempo. Entre ilhas de gelo, algumas de tamanhos monstruosos onde se poderiam construir casas (se bem que não durariam muito tempo porque, como dizer, o gelo... hum... derrete). Recordo três icebergues (ou tempanos, se preferirem) em particular. Um de dimensões assombrosas, outro que de tal forma estava cavado fazia um túnel de um lado ao outro, produzindo um degradé de azuis arrepiante e um terceiro que parecia feito de vidro e mostrava os detritos no seu interior com uma transparência impressionante. Pelo meio, imensos, enormes, que nos fazem pensar: "Se só 15% do icebergue é que está acima da água, imagina o que está ali por baixo. E ali estava eu, a viajar pelo meio das teorias do Freud e bem tentava ver o subconsciente daqueles icebergues mas a cor da água, novamente daquele azul estranho e leitoso, não me deixava.


Sou só eu que vejo ali uma cara?




"Um de dimensões assombrosas..."

"...outro que de tal forma estava cavado fazia um túnel de um lado ao outro, produzindo um degradé de azuis arrepiante..."

"...e um terceiro que parecia feito de vidro e mostrava os detritos no seu interior com uma transparência impressionante."











Parámos para almoçar. Numa península pequena que separa a parte gigante do lago de uma bem mais calma. Atravessamos um pequeno bosque, dantesco como um bosque patagónico deve ser. As suas árvores entortadas ou tombadas pelos fortes ventos patagónicos (120 km/h) contribuem para o cenário irreal que está montado à volta daquele passeio. Em redor continuam as imponentes escarpas agora revestidas de um mato rasteiro. Olho com atenção e noto 2 manchas castanhas e uma branca no meio daquilo. Intrigado fico a pensar o que será e questiono a guia. A resposta, estava longe de imaginar. São vacas selvagens. Ora bem... eu cabras a caminhar sobre escarpas a pique, saltando delicadamente de pedregulho em pedregulho sem cair já tinha visto. Mas confesso que quando o assunto é vacas, a palavra delicadamente não me cruza o pensamento. Vá-se lá saber porquê...

Atravessado o bosque abre-se à nossa frente uma pequena baía. Lá ao longe, meio escondido nas núvens, está um outro Glaciar. Nada a ver com o Perito Moreno mas também de dimensões consideráveis. Por todo a baía, pequenos icebergues flutuam. Parecem filhotes dos outros que tinha visto antes. Mas o cenário é lindo. A ideia era almoçar ali. A ideia. Porque o tempo não estava pelos ajustes. Deixou-nos ver a paisagem, apreciar o cenário e tirar as fotos? Deixou sim senhor. Mas apenas para pouco depois romper numa chuva torrencial que juntamente com o vento se tornava, vá lá, desagradável. O cenário era lindo. Mas o barco era mais convidativo para comer. Os espanhóis com os quais já tinha entretanto travado amizade não sei o que comeram. Mas eu voltei para as minhas sandes mistas e de salame. Juro que já não posso ver pão de forma à frente. Não raras vezes vem-me à memória aquele bife de lombo do Desnivel. Que saudades de Buenos Aires sinto de repente.


"Dantesco como um bosque patagónico deve ser."




Dentro do gelo podem ver-se perfeitamente pequenos detritos que em grandes quantidades dão aquele aspecto escuro aos icebergues e glaciares. A estes detritos chamam-lhes Morenas.
Passado o almoço, tempo para mais icebergues e mais glaciares. Os glaciares eram impressionantes sim senhor. Um deles, mais pequeno, pudemos vê-lo de bem perto enquanto rachava e se partia. Mas o dia era decididamente dos icebergues. Pelo menos para mim. Então quando o sol se abria e lhes batia abrindo neles todos os tons de azul que possam imaginar, chegavam ao ponto de parecer iluminados por dentro.





O Glaciar Upsala. Enorme mas nada comparado com o Perito Moreno.

Outro glaciar. Este mais pequeno estava mais próximo. Estalava e ruia ali mesmo à nossa frente.





Era incrível... E eu feito louco a fotografar. Tão louco quanto distraído até que o meu amigo espanhol me toca no braço e diz:
"Aqueles óculos não eram teus?"
Confesso que o tempo verbal usado na conjugação do verbo ser só por si já me soou muito mal. Mas quando olhei para o lugar para onde ele apontava, no meio da água, não estava nada lá. Olho para o chão do barco e continuo sem ver nada. Meio confuso resolvo atalhar caminho. Levo a mão ao bolso onde tinha os meus óculos de sol e não os sinto. O resto do filme vi-o de imediato. Sorri e disse que achava que sim. No interior chorava aquela morte. Uma morte triste, solitária e fria rumo ao fundo de um lago habitado sabe-se lá por que tipo de seres. Ganharam vida, sairam do bolso e saltaram do barco mergulhando no azul intenso sem sequer olharem para trás para se despedirem de mim. Foi um suicídio algo deprimente (haverá algum que não o seja? Sim. O eventual suicídio do Carlos Castro). Um final a lembrar a Aparição. Mas neste caso foi mais uma Desaparição. Mas dediquei-me a happy thoughts. Tinham crescido e seguido o seu caminho. E diverti-me a pensar que um dia, já sem humanos a habitar a Terra, outros seres encontrarão um estranho objecto no leito daquilo que em tempos fora um lago. E dele desenvolverão as mais incríveis teorias. Gosto de pensar assim. Quem sabe não mudei a história da Pós-humanidade naquele momento?

Terminava assim a excursão. A tarde já se estendia e era hora de voltar. Todo o entusiasmo deixou-me, claro está, cansado. O inerior do barco era quentinho, as cadeiras confortáveis, os italianos estavam mais calados e sobretudo não havia icebergues ou glaciares por perto. Claro que não me fiz rogado. Deixei-me dormir.

Da música escolhida para hoje, ecoava-me na cabeça uma frase: "And you can make it last forever". Bem sei que o aquecimento global não é provocado por nós. Não é. Há milhões de anos toda a Patagónia estava coberta de glaciares e de gelo, a maioria do qual desapareceu ainda muito antes de existir qualquer coisa semelhante ao Homem Moderno (?). É evidente que há um processo de aquecimento natural do planeta que é irreversível. Mas não é menos evidente que estamos a contribuir para o aceleramento desse aquecimento e isso já não será assim tão natural e inevitável.

De volta ao hotel, aquilo que estava programado para ser um jantar solitário de pão de forma com qualquer coisa dentro transformou-se num enorme jantar de amigos de ocasião ao sabor do mais que famoso Cordeiro da Patagónia. Finalmente. Já era tempo de provar a especialidade da zona. Mas outros programas iriam mudar. A custo e com bastante tristeza decidi não ficar mais um dia em El Calafate. Sacrificava a repetição do Perito Moreno apostando que outras coisas mais à frente fariam compensar a decisão. Nessa mesma noite seguiria num autocarro, numa viagem épica de, preparem-se 32 horas até Bariloche. O trajecto é a olho nú ridículo. Volto quase a Ushuaia, cruzo a Argentina do Interior até ao Atlântico. Subo junto à costa e muito acima volto a meter para dentro até Bariloche. No momento da decisão e para ter a certeza que não voltava atrás até chegar ao terminal de autocarros disse à rapariga da recepção que cancelava as duas noites extra que tinha marcado há 30 minutos atrás. A resposta com um sorriso foi "És pior que uma rapariga!". Ah ah. Engraçadinha.

O resto do dia é passado entre o restaurante e um bar a fazer horas até às 3 da manhã, hora do autocarro. Com 4 espanhóis (o Ferri juntou-se a nós depois da excursão), uma americana, uma inglesa e um argentino passo as minhas últimas horas em El Calafate.

Portugal, Argentina, Espanha, Estados Unidos e Inglaterra sentados à mesa. E não foi na base das lajes.

O simpático cão que nos seguiu toda a noite no precurso Hostel - Restaurante - Hostel - Bar - Hostel - Terminal de Camionetas. Achei que o nome apropriado seria "El Perrito Moreno".

Mas antes do jantar houve tempo para outra cerimónia obrigatória. Ao fim de mais de 4 meses na Argentina tomei o meu primeiro Mate. Um Mate Cerimonial onde me explicaram como se prepara, o que se faz e o que se pode ou não fazer consoante o gosto. Tudo com a pompa e circunstância argentina que quando dá valor a uma coisa leva-a mesmo a sério. E naquele frio glaciar, para fechar a tarde em beleza, posso dizer que não havia nada que tivesse caído melhor.


O Kit Mate


O primeiro brinde.


E acabava assim a estadia em El Calafate. Rigorosamente às 3 da manhã, eu o Ferri e a Sonja (uma alemã que conhecemos entretanto) partiamos rumo ao maior trajecto que fiz de autocarro em toda a viagem. E, espero eu, em toda a vida.

Quanto a El Calafate: Até um dia. Espero.


No mp3 - 33 - The Smashing Pumpkins (sim... é capaz de se estar a tornar repetitivo isto, mas que culpa tenho eu se as músicas são boas e se adequam?)



Post scriptum (só para não ser sempre Nota Prévia. Acho que também dá um certo estatuto ao estaminé. Talvez não tanto como a nota prévia mas pelo menos não caio na repetição excessiva. Ou então caio. Não sei...) - São 42 fotos. Sim eu sei. Um exagero. Mas meus amigos... muitas mais ficaram por mostrar. Tive que seleccionar e chegar a este número não foi fácil. Menos que isto não conseguia... há uma ligação sentimental a estas fotos que de cada vez que excluo uma que gosto é como se levasse uma facada.

1 Comments:

Anonymous carmen said...

vou para a patagonia amanhã cedo. ESpero aproveitar um pouco do muito que voce usufruiu. Adorei seus comentários, até a volta, carmen

30/11/10 3:28 AM

 

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